sábado, 2 de janeiro de 2021

REMINISCÊNCIAS

Texto de Sebastião Calomeno (In memoriam)

(20/01/1905 – 17/06/1994)

 

Voltando o pensamento aos tempos da minha infância, tantas coisas importantes se me retratam vivas, deixando-me profunda recordação.

Vejo a velha vila de Curitibanos com as suas curtas ruas, apenas três, Cel. Vidal Ramos, Lauro Müller e Conselheiro Mafra, sem qualquer início de calçamento, andando-se pisando a terra e nos dias de chuvas o uso de botas era obrigatório.

A primeira da sua esquina com a da Cel. Albuquerque até a residência dos Irmãos Dolberth. A segunda, da esquina da Cel. Albuquerque, vinha se findar onde está instalada a agência do Unibanco. A terceira partia da frente do antigo convento dos Reverendos Padres Franciscanos até alcançar a esquina com a Benjamin Constant. Para a frente desta rua seguia um caminho fundo com barrancos laterais e, a esquerda, o velho tanque extinto para o traçado de novas vias públicas, onde os animais iam saciar a sede.

As transversais que têm atualmente os nomes de Cel. Albuquerque, Cel. Henrique Paes de Almeida e Benjamin Constant chamavam-se de becos.

As principais eram cuidadosamente varridas diariamente, e a periferia de denso vassoural e guamirim, roçados periodicamente, amontoado e queimado pelos trabalhadores da então Superintendência Municipal.

A praça da República, um vasto terreno vago pontilhado de pedrinhas de manganês próprias para a indústria do vidro, ficava, como ainda hoje, em frente à Igreja Matriz da Senhora da Imaculada Conceição.

Guardo na memória as pessoas dos dedicados serviçais da casa dos meus finados pais, dos velhos habitantes, cerca de três a cinco mil; das casas distanciadas umas das outras, construídas de madeiras no estilo antigo, algumas com calçadas de pedras trazidas no cargueiro da fazenda do Paredão, como era a da nossa casa. Da Cel. Albuquerque e Francisco de Oliveira Lemos; dos antigos comerciantes, um deles meu saudoso pai Salvador Calomeno com a sua abastada casa “Estrela” na rua Cel. Vidal Ramos, onde reside o Dr. Altino Lemos de Farias com escadaria na frente, que levava as portas de entrada da Loja e de visitas.

Conheci as casas e os negociantes Cel. Francisco Ferreira de Albuquerque, Francisco de Oliveira Lemos, sucedido por seu filho Domingos, João Caetano da Silva; Sergílio Paes de Farias, Clemente Alves do Prado, Francisco Roiter, com bar e bilhares. Davi dos Santos Maciel com padaria, onde se ia comprar pães, e apetitada bolachas e pés-de-moleque e outros doces e guloseimas, pagando com vinténs unidades da nossa moeda circulante naquelas datas passadas.

Mais tarde outros cidadãos foram-se estabelecendo e o comércio aumentando.

Não havia estradas de rodagens.

Lembro-me das nossas modestas escolinhas; dos nossos queridos pretinhos, tio Agostinho Belo e tia Maria; tio Silvestre, de pernas curvadas, cavalgando uma guecha de pelo gateado, muito ligeira, que o trazia da sua chácara ao centro do povoado e tia Maria, sua mulher; tio Firmino do Espírito Santo e tia Margarida; tio Pedro Fabiano da Rosa, responsável como era igualmente, Joaquim Prestes de Souza e Jerônimo Pires de Lima pelos cuidados e preparo da tropa de cargueiros transportadora das mercadorias da firma Hoepeck de Florianópolis, de Blumenau, de Rio do Sul para a loja de tecidos, armarinhos, secos e molhados, como se dizia na época, de propriedade do meu pai.

As viagens da tropa demandava dias e dias ainda mesmo com o bom tempo, passando por estradas íngremes, descendo e subindo serras, atravessando rios, além do risco de ser atacado pelos indomáveis índios que habitavam as regiões da Serra dos Pires, Ilhéus e Morro da Subida, como também enfrentava chuvas e frio na estação do Inverno.

Tia Ricarda, lavadeira de roupas, trabalhava constantemente na casa da minha extremosa mãe, Jesubina Rosa de Oliveira Calomeno, ajudada pelos demais empregados, no fabrico de tachadas de sabão, velas de sebo, marmeladas, torrefação de café moído por duas ou três mãos, no sistema de pilão.

Eu, garoto irrequieto que fui, meus irmãos Miguel, Francisco (Tiquinho), crescidos, minha irmã única, Adalgisa (Zica) e o caçula Carlos (Lico), estávamos sempre recebendo os bons conselhos de uma mãe de temperamento sereno, amorosa e exemplar Dona-de-casa.

Integrava a família, Nicolau Signoreli, afilhado e criado na mesma consideração e carinho dos filhos da casa, e Antonio Mafra da Rocha, professor de nós menores.

Com o falecimento do meu pai, Nicolau, moço compenetrado, inteligente, de boa instrução a quem minha mãe depositava inteira confiança pela honestidade que sempre revelou, teve a árdua incumbência, com a colaboração dos irmãos de mais idade, de administrar os muitos bens adquiridos pelo desmedido, grande tirocínio e dinamismo de trabalho de que era natural possuidor meu pai, orientar e solucionar os mais variados negócios da família.

Aos quatro anos de idade, minha mãe e os meus irmãos sofremos o rude golpe da perda do nosso chefe, em 4 de agosto de 1911, falecimento ocorrido na cidade de Lages, para lá conduzido em banguê, nos ombros dos seus inúmeros amigos, compadres e parentes, numa jornada de muitos dias, com descanso de trecho em trecho, troca de animais e de outras providências exigidas pela urgência da chegada do enfermo em estado grave, a fim de ser submetido aos cuidados médicos.

Tempos passados, não se podia valer de outros meios de condução senão o lombo dos animais.

Miguel, o primeiro dos irmãos ao falecer nosso pai, estudava no Colégio Catarinense em Florianópolis, Francisco e Nicolau no colégio São José de Lages, dos Reverendos Padres Franciscanos, presentemente capela da Paróquia.

Iniciei o conhecimento das primeiras letras aos cinco anos de idade no colegiozinho dos Reverendos padres Franciscanos, atualmente Colégio Santa Terezinha. Tive a felicidade de estudar catecismo que aos alunos ministrava o imortal sacerdote Frei Rogério reverenciado em todo o Brasil com respeitosa memória. Nutro intensa saudade dos meus primeiros mestres.

Somos três irmãos remanescentes, idosos com as saúdes abaladas, graças a bondade do todo poderoso ainda respiramos o ar acalentador da existência, aguardando como aguardavam os dois que nos deixaram o convívio por terem sido chamados por Deus, que a sábia e patriótica administração municipal em homenagem póstuma perpetue numa rua ou praça, o nome daquele que ombreou com o governo do município e soerguimento desta histórica cidade.

Cruzei a minha meninice e hoje, sentindo o peso dos anos, aqui estou depois de ter ocupado vários cargos públicos, premiado com a aposentadoria da qual me fiz credor pelos anos de serviços prestados ao Estado e ao Município tendo presente aqueles dias despreocupados e alegres da criança.

Lembro-me de que a juventude, na época, não contava para divertir-se com melhor ambiente social pela inexistência de entidades recreativas organizadas. As domingueiras e os bailes, promoviam-se nas residências das famílias amigas nas datas dos aniversários, batizados e casamentos.

Das nossas bandas de músicas pelos competentes maestros Lourencinho Batista, Marcolino Amaral, coletor federal aposentado, Cândido Rodrigues de Lima e Alfredo Lenser, todos na missão celeste entoando com os anjos, as melodias do altíssimo.

Não esqueço o contato com meus inesquecíveis padrinhos e madrinhas que me levaram à pia batismal entregando-me no rebanho de Cristo. Deles sempre ouvia as meigas expressões: “Deus te abençoe” constituindo um conforto para mim porque o meu sempre lembrado pai, assim não mais me saudava.

No instante que escrevo este pequeno trabalho de recordação, o faço, sentindo passar-me pela mente todas as fases da minha permanência por esta benfazeja terra, desde os primeiros passos aos últimos dias que ainda vivo.

Os meus colegas de aulas e companheiros nas brincadeiras do pião de fieira, barra, da gata cega, da pandorga, das bolinhas de vidro, das fugidas de casa para os banhos no poço da taipa e nas lagoas, com aquela cordialidade de vida infantil. Muitos deles não tenho mais encontros porque o pai do céu os convidou para ocupar seus lugares na glória eterna, a eles ofereço minhas orações. Aos sobreviventes, amigos íntimos, o meu fraterno abraço.

Parodiando Casemiro José Marques de Abreu, poeta da saudade e do amor, com ele canto uma das estrofes dos seus oito anos:

Como são belos os dias

Do despontar da existência

Respira a alma inocência

Como perfumes a flor;

O mar – é um lago sereno,

O céu – um manto azulado,

O mundo – um sonho dourado

A vida – um hino d’amor


(Data provável do texto - 02/setembro/1988)


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