quarta-feira, 17 de maio de 2023

CRENÇAS...


Texto de Antonio Carlos Popinhaki


A história a seguir é verdadeira e se deu em Curitibanos. Alguns personagens retratados aqui, ainda vivem em nosso meio. Era o ano de 1973. No mês de maio, a cidade estava em festa por conta das comemorações do centenário da instalação oficial do município. Na verdade, tais comemorações deveriam ter ocorrido em 1969, quando, de fato, ocorreu o centenário da emancipação territorial do município de Lages e a criação do município de Curitibanos. Por conta dos prefeitos, Wilmar Ortigari que encerrou o mandato em janeiro de 1970 e posteriormente, Hélio Anjos Ortiz que teve a sua gestão de janeiro de 1970 a janeiro de 1973, não desejarem comemorar nada, Onofre Santo Agostini que assumiu em 1973, realizou uma brilhante e memorável comemoração. Entre os atrativos disponibilizados para a população, desfilaram na Avenida Salomão Carneiro de Almeida, vários carros alegóricos, representando todos os segmentos do município. Foi convidado para se apresentar nos céus curitibanenses a famosa "Esquadrilha da Fumaça". Quando aqui chegaram, não puderam mostrar aos curitibanenses, todas as suas coreografias e alegorias, bem treinadas pelos exímios pilotos, pois os céus estavam nublados, inibindo o espetáculo. Todavia, diariamente, faziam voos rasantes sobre os lares da pequena cidade.

Naquele ano, vivia em Curitibanos um casal, cujo marido se chamava Mário Amazonas Rio Branco de Moraes e a sua esposa, dona Alexandrina Almeida dos Santos, também conhecida por Alexandrina Almeida de Moraes. Era um casal oriundo de famílias tradicionais da região. Apesar de serem pessoas de posses, não tiveram filhos para dividir a herança familiar. Mário, como a maioria dos fazendeiros da região comprou um automóvel para deslocar-se com a sua esposa em viagens corriqueiras, principalmente para o litoral, onde também era proprietário de um apartamento em Balneário Camboriú. O automóvel do casal era um Willys Itamaraty, um carro luxuoso para os padrões de 1973.

Alexandrina era uma mulher muito católica. Sendo assim, mantinha as características extremamente peculiares daqueles que professam suas crenças, chegando a transparecer demasiadamente, em fanatismo aos olhos dos leigos e dos céticos. Como não tinham filhos e talvez, pela razão da viagem ao litoral ser cansativa, apesar da rodovia BR-470, naquele ano, ter a aparência de pavimentação asfáltica nova, convidaram para ser o motorista, numa dessas empreitadas, Aldair Goetten de Moraes. A viagem ocorreu num domingo, no dia em que a Esquadrilha da Fumaça se apresentaria em Curitibanos. Primeiramente, o casal foi à missa matinal, pois não faltavam a nenhuma, nos domingos pela manhã. Depois, se prepararam para a viagem. Aldair estava esperando os dois na frente da casa, conforme o combinado. Quando chegaram em casa, Alexandrina preparou um café e dirigiu-se para um dos cômodos, se ausentando temporariamente. Mário disse ao motorista:

— A minha véia foi rezá! Ela é muito devota.

Não demorou muito, ela retornou até onde os dois homens estavam, trazendo consigo um rosário na mão. 

Após carregarem as malas no porta-malas, os dois embarcaram no carro. O motorista e o proprietário do veículo sentaram nos bancos da frente do automóvel. Alexandrina não apareceu por um tempo:

— Vamo esperá, porque a véia não sai sem rezá. Ela tem que rezá. — Disse Mário ao condutor.

Depois de um período, que pareceu uma eternidade, principalmente para o impaciente motorista, Alexandrina saiu de casa e dirigiu-se ao automóvel, se instalou no confortável banco traseiro. Nem bem saíram de Curitibanos, Alexandrina puxou do rosário e começou a rezar baixinho. Não tanto que o marido e o condutor do veículo não pudessem escutar. “Ave Maria, cheia de graça, …”

Aquelas palavras, incansavelmente repetidas, chegavam até a ser incomodativas, pois não deixavam os dois homens conversarem sobre qualquer assunto. Quando chegaram perto da descida do Túnel 18, Mário ligou o rádio, para azar do motorista, estava passando uma transmissão de uma missa, uma vez que era domingo. Era o combustível para atiçar mais ainda a manutenção da fé de Alexandrina. Ela pediu para o marido aumentar o volume do rádio. No banco traseiro, acompanhou toda a missa, como se estivesse fisicamente presente, cantou e orou. Na hora da “consagração”, se ajoelhou sobre o banco do carro em movimento. Alexandrina deu o seu jeito, equilibrando-se para não cair, pois o carro estava em movimento e tinha curvas na rodovia.

Naquela viagem, Alexandrina foi, praticamente, de Curitibanos a Balneário Camboriú com aquele rosário, rezando incessantemente. Os dois homens, num certo momento, ignoraram aquela reza e começaram a conversar sobre vários assuntos, quando passavam próximo a uma Igreja, Alexandrina interrompia a sua oração e a conversa dos dois.

— Óia meu véio, uma igreja! — E apontava para o local.

Quando chegaram em Balneário Camboriú, o motorista foi dar uma volta na cidade, enquanto o casal se instalou no apartamento. A volta de Aldair para Curitibanos, seria de ônibus, não antes de uma boa refeição oferecida pelo casal Mário e Alexandrina. Na hora da refeição, houve mais reza e uma espécie de agradecimento a Deus por conduzir todos em segurança até o destino. Na hora de pegar o ônibus, Alexandrina seguiu atrás de Aldair, com o rosário, rezando continuamente. Após benzer e abençoar o motorista incansavelmente, despediram-se.

Certa vez, no final de novembro de 1973, veio para Curitibanos, uma amiga de Alexandrina, que morava em Curitiba, parente da família Tortato. Aldair estava em sua casa, fazendo os seus trabalhos domésticos, quando apareceu no seu portão, o jovem Enori Pozzo. Após alguns breves cumprimentos:

— A dona Alexandrina quer saber se você não vai de motorista, levar ela e uma amiga em Lages?

Aldair concordou e no dia e hora marcada, conduziu as duas até a cidade de Lages. Ele não perguntou-lhes nada, até que chegassem nas imediações da área urbana daquela cidade serrana:

— Onde as senhoras querem ir?

— Você sabe onde mora o Seu Candinho? — Respondeu-lhe, Alexandrina.

Após algumas informações, chegaram até o local desejado. O endereço informado, conduziu-os a um terreno grande, rodeado com uma contínua cerca de ripas de madeira, com duas casas, aparentando, velhas, de madeira, sem pintura. Na frente das casas, havia um portão, também de madeira, com uma grande e visível corrente com um, igualmente, grande e visível cadeado. Pararam em frente ao portão, Aldair buzinou brevemente. Não demorou, apareceu uma menina para ver do que se tratava.

— Seu Candinho tá aí? — Perguntou Alexandrina.

— Tá! Mas ele não tá atendendo.

— Você leva um bilhete prá ele? 

— Levo! — Disse a menina.

Alexandrina então pegou um envelope, uma folha de papel, escreveu uma pequena mensagem, dobrou a folha e anexou junto, algumas cédulas de dinheiro, entregou o bilhete e o dinheiro à menina. Tentou ser discreta, mas o motorista, percebeu que se tratava de um valor alto. 

Não demorou muito, a menina voltou com a chave do portão. Nesse tempo, entre a ida e volta da menina, Alexandrina falou para a amiga de Curitiba, que estava ao lado:

— Eu vô rezá um terço, lembrei agora que o Bispo de Lages, Dom Daniel Hostin faleceu.

Nisso, a menina voltou com a chave do cadeado, abrindo o mesmo para as duas senhoras entrarem. Apareceu também, um homem para recepcioná-las. Tinha a aparência de baixinho, um tanto obeso. Naqueles tempos esses termos não eram considerados pejorativos.

— As senhoras entrem. — Ele falou às duas idosas que Aldair trouxe de Curitibanos.

No que diz respeito ao motorista, não houve nenhuma referência, entretanto, como curioso que era, acompanhou as duas até uma das casas. Quando adentraram, houve surpresa, pois o motorista, talvez não entendera no que exatamente estavam se envolvendo. Aldair nunca havia visto um “terreiro de umbanda”. Tinha imagens de todas as entidades cultuadas naquela crença. Tinha facas e machadinha cravadas na parede de madeira, estátuas de personagens que lhe eram totalmente desconhecidas. Havia garrafas de cachaça perto dessas estátuas. E havia uma grande mesa, onde sentaram juntas, as duas senhoras e o motorista, esse, um pouco mais afastado. Candinho sentou-se ao lado das duas e começou a conversar com elas. Não demorou muito, chegou uma moça que fazia parte das crenças de Candinho, cumprimentou-o com alguns toques simbólicos, pertinentes aos dogmas umbandistas. Ela também sentou-se perto das senhoras e de Candinho. Aldair ficou observando tudo de longe, talvez, com algum medo, ou com algum receio de terem se envolvido em alguma encrenca.

No início das conversações, se apresentaram, inclusive, Candinho, que contou-lhes sobre as suas origens e os lugares onde morou. Disse-lhes que tinha 71 anos. De repente, o idoso deu um grito que assustou, as idosas e o motorista. Levantou-se e começou a chocar-se contra uma parede de madeira. O coração de Aldair começou a palpitar, querendo literalmente, sair pela boca. Candinho dirigiu-se às duas idosas e começou a pegar nos seus rostos e a forçar suas cabeças para trás e para frente, em movimentos de empurra e puxa. Aldair estava a ponto de intervir, mas conteve-se.

Depois da tal consulta, saíram todos. Aldair percebeu que a amiga de Alexandrina não gostou muito do tratamento dado por parte de Candinho. Isso ficou evidente. Ele também não soube exatamente, que tipo de consulta as duas foram fazer lá em Lages, uma vez que Alexandrina era extremamente católica, não entendeu por que ela desejou consultar outra religião.

O fanatismo é algo muito perigoso. Faz as pessoas se tornarem cegas. As extenuantes orações, por causas, que, muitas vezes, não tem soluções, transforma as pessoas em fantoches de doutrinas que possuem espertos e treinados homens no topo da liderança eclesiástica, com o intuito de explorar a ignorância alheia. Quando a pessoa se apega a uma crença, torna-se propensa a ser enganada. Esse engano sempre está associado com dinheiro e a manutenção da ignorância. Nunca é apenas psicológico, sempre têm bens materiais envolvidos.

No caso da senhora Alexandrina, ela ia de Curitibanos até o litoral, rezando, orando, e como a maioria dos seguidores que se atiram de corpo e alma numa doutrina, não compreendeu o que exatamente a sua religião professava ou pregava. Ela, aparentemente, não sabia que havia diferença entre o catolicismo e a umbanda. Como ambas, usavam santos, exploravam o obscurantismo, acreditou, ser “quase a mesma coisa”. Sem entrar em mais detalhes, essa foi mais uma história envolvendo curitibanenses, com fatos reais, que, por sorte, foram resgatados.



Referências:


Com informações de Aldair Goetten de Moraes


Dom Daniel Hostin. On-line, disponível em: https://www.diocesedelages.com.br/domdaniel.php


Registro de óbito de Alexandrina Almeida dos Santos. Portal FamilySearch. On-line, disponível em: https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:S3HY-62YS-MXB?i=298&wc=MXYP-86F%3A337701401%2C337701402%2C338892601&cc=2016197


Willys Itamaraty. On-line, disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Willys_Itamaraty

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