Texto de Antonio Carlos Popinhaki
Lá pelos anos da década de 1940, o prefeito de Curitibanos era o senhor Salomão Carneiro de Almeida. Homem forte e enérgico, considerado pela maioria dos curitibanenses, uma espécie de ignorante, de fantoche político, pois não tinha muito estudo e galgou o posto de chefe do poder executivo local, graças à influência da família Almeida, apadrinhado pelos membros políticos da família Ramos, de Lages. Os Almeidas sempre mandaram em Curitibanos, direta ou indiretamente, desde o tempo do Império. Era conhecido por alguns pela alcunha de “Salo” e também por “Salico”, tamanha a intimidade e a simplicidade com que estava familiarizado entre os habitantes locais. Nascera e fora criado na fazenda do seu pai, o Major da Guarda Nacional, Fermiano Rodrigues de Almeida e da sua mãe, dona Clara Carneiro de Almeida.
Salico casou-se com a sua prima, Felicidade Vieira de Almeida, filha do seu tio, Graciliano Torquato de Almeida. No início, o casamento deu certo, depois de se desquitar judicialmente, no final da vida do casal, foram morar juntos na casa do genro, o senhor Martinho Lemos.
A história a seguir é verdadeira e merece ser escrita para mantermos viva, uma parte da história local. Havia nos arredores da cidade de Curitibanos, morando de favor numa das fazendas existentes na época, uma senhora de nome Iracema, conhecida popularmente, como dona Cema. Ela morou grande parte da sua vida de favor com uma tradicional família curitibanense, chegando a possuir quase 20 cabeças de gado, a maioria, vacas-leiteiras que ela ganhou dos proprietários e que se reproduziram ao longo dos anos. Dona Cema vendia leite diariamente em Curitibanos. Todos os dias, ela acordava de madrugada, ordenhava as vacas e levava com a ajuda de um cargueiro, ou mesmo, de ônibus de linha, os litros de leite para as casas dos curitibanenses. Tinha os seus compradores certos, que encomendavam o precioso líquido branco, rico em cálcio e a pagavam corretamente, conforme o combinado. Ela já era uma mulher viúva e dependia somente dessa atividade para se manter.
Certo dia, ao perambular entre as casas de Curitibanos para entregar as encomendas, deparou-se com o prefeito, homem de grande estatura, fortão, que provocava certo temor, principalmente, entre os mais humildes. Nessa época, havia falta de leite em Curitibanos, então, dona Cema, aproveitando-se dessa demanda, explorou o comércio livremente, ganhando algum dinheiro com isso. Salico estava no auge do seu poderio em Curitibanos, iniciara o seu mandato com a ajuda do Interventor Federal em Santa Catarina, o senhor Nereu Ramos. Ele se achava uma espécie de semideus na região. Ao notar que a viúva estava comercializando leite nas ruas da sua cidade, foi até ela:
— O que é que você está fazendo? — Perguntou o prefeito à dona Iracema.
— Estou vendendo leite. — Respondeu-lhe a idosa.
— Você paga imposto por essa atividade?
Antes mesmo de uma resposta da senhora, que estava cansada por carregar aqueles litros pela pequena cidade de Curitibanos, subindo e descendo morros e ladeiras, Salico emendou:
— Eu vou te tacar na cadeia. Hoje você me escapa, mas se eu te pegar novamente, vendendo leite em Curitibanos, sem pagar imposto, vou te tacar na cadeia.
O pior é que o prefeito Salomão Carneiro de Almeida não respeitava as pessoas, principalmente, quando se sentia superior a elas, devido ao seu cargo público de mandatário da cidade. Dona Cema, sentindo-se acuada, ficou nervosa, com medo e receio de ser presa pelo prefeito. Foi para casa chorando. Perguntada sobre a razão daquele choro, respondeu aos membros da família que a ajudava:
— O prefeito me encontrou na rua e disse que vai me prender se me ver vendendo leite novamente.
— Não vá atrás da conversa do Salico. O Salico é um bobo alegre, continue vendendo leite. — Tentaram animá-la.
— Eu vou dizê uma coisa para vocêis: esse desgraçado não vai morrê sem antes pedir leite pra mim. Guardem bem essas palavras.
Ironicamente, o mundo dá voltas, às vezes estamos numa situação confortável, noutras, numa situação que nada podemos fazer, pois a natureza humana é frágil e devido às adversidades naturais, nada podemos fazer quando perdemos o controle. Foi assim com a vida do casal Salomão Carneiro de Almeida e Felicidade Vieira de Almeida. Tinham tudo para serem felizes, criar as suas filhas e viverem felizes até os seus últimos suspiros, contudo, não foi assim. Depois de um inevitável desquite judicial, coisa rara naqueles tempos, onde os casais permaneciam casados, mesmo que a vida conjugal fosse um inferno. Após gastarem todo o patrimônio familiar herdado de seus pais, foram, os dois, morar de favor na casa do genro. Genro esse, que Felicidade não queria para a sua filha, pois, segundo a concepção dela, ele tinha a fama ou a reputação não condizente para filha de um Almeida. Mesmo contra a vontade, Martinho e Levy se casaram e viveram assim, até seus últimos dias.
Quando estava ainda no seu auge, segundo o seu sucessor e cunhado, Lauro Costa, não era raro Salomão proferir, em tom de certa arrogância:
— Um fazendeiro de verdade, tem que ter uma boa vaca de leite e um bom cavalo pra encilhar. Caso contrário, não possuindo esses animais, uma pessoa não é fazendeiro de verdade.
Anos depois do ocorrido com a dona Iracema, após encerrar a sua participação na política de Curitibanos, Salomão Carneiro de Almeida, o homem que se autopromoveu, dando, ele mesmo, o seu nome para a principal avenida da cidade, teve uma espécie de câncer na sua testa, uma ferida feia e aparente. Essa ferida foi aumentando gradativamente. Com o passar do tempo, com quase 10 anos de sofrimento, acabou cego pela ação devastadora da ferida.
Quase no final da sua vida, pediu para a filha Levy:
— Levy, minha filha, eu tenho muita vontade de tomar leite.
Naquela altura, nos primeiros anos da década de 1970, já contava com seus 70 anos, estava cego, sem possuir terreno, vaca, cavalos para encilhar e dependia da ajuda dos familiares para se locomover e para se alimentar. A sua filha Levy comprava leite e o dava num copo para que ele tomasse.
— Você, minha filha, acha que só porque estou cego, não sei diferenciar um leite de verdade? Isso que você está me dando não é leite, mas sim, água misturada. Eu, mesmo na velhice, sei sentir o gosto de leite de verdade.
Então, sua filha Levy, comprou leite de diversas pessoas que comercializavam na época. Ela queria atender o desejo do pai e satisfazer a sua sede e paladar. Ela pedia a todos que trouxessem o apojo, ou seja, o leite mais consistente da vaca, após a primeira ordenha, quando sai um leite mais ralo. Mesmo assim, Salomão dizia:
— Não quero! Isso aí não é leite, é água.
O tempo passou, ninguém da família conseguia contentar o antigo mandatário de Curitibanos. Certo dia, depois de praticamente 30 anos, alguém falou para a dona Levy:
— Há muitos anos, houve em Curitibanos, um incidente envolvendo o seu pai e uma vendedora de leite. Essa mulher jurou que não morreria, enquanto o seu Salico não lhe pedisse leite. — Dessa forma, contou-lhe o que sabia.
— Mas, então, onde está essa mulher?
— Quem sabe dela é o senhor Felipe Goetten.
Levy foi ter com o fazendeiro o mais rápido que conseguiu, após encerrar a conversa com a pessoa que lhe contou do ocorrido e da história entre Salomão e Iracema.
— Seu Felipe, por favor, o senhor poderia pedir pra dona Cema trazer um leite pra mim?
Assim, o senhor Felipe Goetten foi até o local onde Iracema morava e disse-lhe, em tom autoritário.
— Você rogou praga no “parceiro”, agora vá levar o leite que ele quer tomar.
Após as vacas serem recolhidas na mangueira, no outro dia, logo pela manhã, dona Iracema pegou 2 litros de leite e foi levar para atender o desejo de Salomão. Chegando na casa do senhor Martinho e sua esposa Levy, deu com o ex-prefeito sentado numa cadeira de balanço, na área da casa.
— Bom dia seu Salomão! — Iracema cumprimentou-o educadamente.
— Bom dia! Quem é a senhora? — Respondeu o idoso.
— Sô a Iracema. Vim trazê um leite pro senhor. — Dessa forma, com o jeito coloquial, se apresentou. — Sube que o senhor tava com vontade de bebê leite.
— Pois hó! Eu, faiz tempo que quero bebê leite, mas minha família me logra. Não sei por que, não querem me dá leite. A senhora tá com o leite aí?
— Sim, tá aqui comigo.
— A senhora pede um copo prá Levy. A senhora mesma me dá esse leite. Senão eles me logram. — A filha de Salomão não demorou e trouxe um copo para a dona Iracema, que o encheu com leite. Entregou nas mãos do antigo prefeito, que levou-o à boca, tomou e por um instante, não respondeu nada. Aparentemente, pensou, enquanto sorvia o precioso líquido. — A senhora me dá mais um pouco. — Após tomar mais leite, continuou quieto, num momento que parecia uma eternidade, pois o silêncio parecia assustador para as duas mulheres que não trocaram palavra alguma, apenas se entreolhavam.
Ao quebrar o silêncio, Salomão, indagou à vendedora:
— Eu lhe fiz alguma coisa, algum dia?
Iracema contou-lhe a história, ou melhor, lembrou o idoso do ocorrido, 30 anos atrás, quando ele era o prefeito de Curitibanos e ela, uma humilde viúva que vendia leite para sobreviver financeiramente.
— A senhora, por favor, aceite o meu pedido de perdão.
— O senhor está perdoado. — Disse-lhe Iracema.
Dona Felicidade, que estava dentro de casa e que escutou toda a conversa, saiu à área da casa e brigou com o marido, em tom de aspereza:
— Viu? Você pensava que era mais do que os outros?
Dessa forma, Salomão Carneiro de Almeida tomou o seu tão sonhado e desejado leite. A “praga” da dona Iracema, que caiu sobre o antigo mandatário, considerado por muitos supersticiosos, como um feitiço, desfez-se naquela manhã. Não demorou muito, encontramos no registro de óbitos do Cartório de Registro Civil de Curitibanos, na folha n.º 268, registro n.º 3.985, diz que em 29 de novembro do ano de 1977, na cidade de Curitibanos, estado de Santa Catarina, devido à causa da morte: “parada cardio-respiratória, lesão encefálica, carcinoma de crânio”, faleceu, Salomão Carneiro de Almeida, às 14 horas, com 74 anos. Não possuía bens para inventariar.
Referências para o texto:
Com informações de Aldair Goetten de Moraes
Imagem ilustrativa: Istock. On-line, disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/deutsche-welle/2022/07/30/beber-leite-nao-foi-o-que-motivou-maior-tolerancia-a-lactose-em-humanos.htm
POPINHAKI, Antonio Carlos. Salomão Carneiro de Almeida. Blog curitibanenses. On-line, disponível em: http://curitibanenses.blogspot.com/2013/05/salomao-carneiro-de-almeida.html
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