Texto de Marcelino Ribeiro
Estamos no inverno de 1967. Lá fora, cai a chuva sem cessar; chuvinha miúda, fina desagradável e gelada. Os faróis dos automóveis subindo a rua Hercílio Luz, em louca disparada, iluminam a fachada do Hospital Frei Rogério, pardacenta, formando uma insipidez desoladora.
Dentro, de pé, um jovem olha o panorama da cidade, visto da janela de seu quarto, no hospital. Na realidade estava atemorizado. Já sentia-se caminhando sobre nuvens, como um sonâmbulo. Sua ansiedade somente será satisfeita, com a chegada de seu sogro e sua filha, a qual ele aguarda a quase uma hora.
Aquela espera fez com que seu pensamento começasse a emergir do nevoeiro que o envolvera durante cinco anos. Aquele silêncio rasgava seu coração, e tudo conspirava para trazer-lhe a lembrança da mulher morta, de Ana Lúcia. Sentiu-se horrivelmente.
Lágrimas, queimando-lhe as faces, corriam de seus olhos. Demoradamente, seu olhar se fixara num ponto escuro do aposento, demonstrando, a princípio, que havia algo no fundo de sua mente, a inquieta-lo. Qualquer coisa de medo, de absurdo, provocado por aquela amnésia, que o afastara durante longo tempo, da sociedade, do convívio de seus familiares, vivendo como um estranho sem parentes, sem amigos, sem família, ou como uma sombra errante condenada à expiação de suas faltas.
Depois, quando voltou a si, saindo daquele êxtase, daquela expressão vagamente desnorteada, levou algum tempo para reconhecer o que o rodeava, até seu próprio médico.
− Bom dia, Luís Carlos! Exclamou o Dr. Júlio.
− Bom dia, doutor. Respondeu o jovem.
− Então, como se sente? Disposto a ir para casa? Não precisa ficar mais aqui. Você está completamente curado.
− Sim. Tudo graças ao Senhor. Não sei como agradecê-lo pelo que fez por mim, durante todo esse tempo.
− Ora, Luís Carlos, não precisa agradecer. Cumpri meu juramento. Além disso, foi questão de sorte. Talvez lá do outro mundo, Ana Lúcia o tenha ajudado. Nada tem a temer.
− Muito obrigado, Dr. Júlio.
− Quanto tempo vai esperar ainda, para partir? Perguntou o Doutor.
− Estou esperando meu sogro e minha querida filhinha. Ficaram de vir me buscar agora, e já são quase 17 horas. Eles não aparecem… Não sei o que se passa. Estou preocupado.
− Não é nada grave, Luís Carlos. A demora é devida ao mau tempo. Daqui a pouco, eles chegam. Não fique com essa cara, rapaz. O pior já passou.
− É, Doutor. O pior já passou. O Senhor tem razão.
− Até a vista, Luís Carlos. Espero não vê-lo mais por aqui, pelo menos, doente. Felicidades. Você bem a merece.
− Até a vista, Dr. Júlio. Muito obrigado por tudo. Que Deus lhe pague!
− Não há de quê.
O médico seguiu seus passos lentos e firmes. Outras pessoas, agora, por certo, necessitavam de sua presença, de sua assistência, de seu conselho, de seu conforto.
O jovem apanhou sua mala, fechou a porta do aposento, e começou a caminhar pelo enorme corredor do hospital, em direção à porta de saída. Mal se viu na rua, sentindo a chuva bater copiosamente em seu rosto, e aspirando o ar puro e salutar daquela tardinha de inverno, sentiu-se completamente diferente, totalmente tranquilo.
Caminhou alguns passos, e divisou uma pequena figura que corria, de braços abertos ao seu encontro.
− Papai… Papai…
Ele parou. Baixou seu olhar. Lágrimas marejaram sua face. À sua frente, uma criança de olhos azuis, cabelos loiros, compridos, abanados pelo vento e parcialmente molhados pela chuva, continuava correndo, chamando-o.
− Papai… Papai…
Era sua filhinha Ana Lúcia. Ela tinha o mesmo nome da mãe. O jovem não podia reprimir sua alegria, sua felicidade. Abaixou-se para apanhar, num longo e afetuoso abraço, num paternal “upa”, aquele “pedacinho de gente”.
A menina cobria-o de beijos. Ele, agora, chorava de contentamento. Ela, sentindo as lágrimas na face do pai, perguntou-lhe:
− Por que chora, Papai?
− É uma história triste e comprida, minha filha.
O Senhor Junqueira aproximou-se do genro e da neta. E, os três, abraçados, caminharam em direção do automóvel que estava estacionado a pouca distância dali.
− O Senhor e o Vovô, sempre dizem assim: “é uma história triste e comprida”. Mas nunca têm a coragem de contar-me. Por quê?
− Está bem! Exclamou Luís Carlos. — Vou contar-lhe a história triste e comprida. Tudo o que aconteceu comigo e sua mãe. Mas você deve prometer que não dirá nada a ninguém.
− Sim, Papai. Eu prometo. Será nosso segredo.
− Hum... Hum... Então, escute.
O jovem, empunhando o volante do automóvel, tendo a seu lado, Ana Lúcia e seu sogro, começou a narrar, detalhadamente, tudo o que acontecera há cinco anos.
− Há tempos que já vão longe, justamente num dia como hoje, porém, à noite, eu dirigia um automóvel sobre o calçamento molhado e reluzente, ganhando velocidade. Já fazia algum tempo que percorria a estrada, agora, lamacenta e escorregadia. Havia terminado o calçamento da Avenida. Pouco depois, o carro seguia em alta velocidade, não mais sendo possível detê-lo.
Procurei controlar o veículo. De repente alguém tentava atravessar a rua. Apaguei as luzes, no sentido de chamar a atenção da pessoa que já se encontrava bem próxima ao carro. Nada disso adiantou. Sobressaltado, acendi os faróis, e a mulher foi envolvida por um halo de luz, ofuscando sua vista. Ficou imobilizada, paralisada. Não sabia o que fazer.
O suor corria pelas minhas faces. Suava frio. Estava desesperado. Tentei desviar o automóvel, todavia, o veículo passou como um meteoro, jogando a mulher, com violência, à sarjeta esquerda, e indo ao encontro do barranco.
Fiquei, durante um curto espaço de tempo, aturdido. O sangue começou a gotejar de meu rosto, sujando toda a minha roupa. Ele foi todo cortado pelos estilhaços do vidro do para-brisa, que se espatifou com o choque. Felizmente não havia quebrado nenhum osso. Tomei consciência da situação. Lembrei-me da mulher que acabava de atropelar. Corri em seu auxílio.
Era uma linda jovem, apesar de seu rosto estar totalmente banhado em sangue e barro. Ela continuava desmaiada. Procurei reanimá-la. Dentro em pouco, ela voltava a si. Sentia dores horríveis numa das pernas e nas costas. De seus lábios brotava um sorriso vermelho. Era sangue que corria de sua boca, às golfadas. Ela estava gravemente ferida.
Consegui, depois de um enorme sacrifício, tirar o automóvel do barranco. Apesar da avaria sofrida com o choque, principalmente na parte da frente, próximo ao farol, o carro continuava trabalhando, quase normalmente.
Coloquei o veículo em marcha, e a jovem ao meu lado, no banco da frente e rumamos ao hospital, à toda velocidade… Em lá chegando, fomos atendidos pelo Dr. Júlio. Meu rosto e cabeça ficaram cobertos de gaze e esparadrapo. Nada grave. Apenas arranhões. Estava inteiro. A jovem, todavia, não teve a mesma sorte. Ela foi imediatamente encaminhada à sala de operação. Seu estado não era nada agradável.
Depois de longa espera, ela foi conduzida a um quarto, onde permanecia imóvel, sob os efeitos da anestesia. Graças aos esforços do Dr. Júlio estava salva. Havia quebrado a perna esquerda e dois ossos da costela. Contudo, já se encontrava fora de perigo. Internamente, a parte mais afetada com a batida, foi o pulmão esquerdo.
Regressei à minha casa, logo depois de ter conversado com o Dr. Júlio. Voltaria a visitá-la no hospital, somente no outro dia, cedo. O sino da matriz começou a badalar. Era meia-noite, quando deixei-me cair na cama. Meu sono não passou de um pesadelo. O pouco que dormi, não conseguiu dominar meu temor, minha agitação. Estava, realmente, preocupado. Meu pensamento voltava constantemente à jovem desconhecida que eu, sem querer, havia atropelado.
O inverno de 1961, amanhecia. Os raios do sol, penetrando pelo vão da janela de meu quarto, banham de luz o pequeno aposento. Levantei-me, cerca de nove horas e depois de me arrumar, girei em direção ao hospital. Precisava vê-la. Eu havia prometido ao Dr. Júlio.
Cheguei, depois de alguns minutos, ao quarto da jovem. Penetrei, com autorização da enfermeira, em seu aposento. Ela dormia placidamente. Seus cabelos loiros, cor de sol, cobriam uma parte de seu rosto, bastante pálido. Seu nariz meio arrebitado e sua pequenina boca, davam um toque de beleza e graça, àquela face clara. Ela era linda. Sua beleza deixou-me impressionado, de maneira sobrenatural, e já não dormia sossegado, tranquilo… Via, entre nuvens e fumaças, o belo rosto da jovem, que me perseguia por todos os recantos. Parecia alucinação, loucura, paixão, amor…
A moça ficaria internada às minhas expensas. Seu restabelecimento era lento, muito lento. Por certo, permaneceria no hospital durante uma longa temporada, provavelmente, uns noventa dias. Assim, procurei, a todo custo e de toda maneira possível, esquecê-la, pois, caso contrário, apaixonar-me-ia por Ana Lúcia. Esse era o nome que constava de seu título de eleitor, o qual foi encontrado em sua bolsa de couro, preto.
Afastei-me de Curitibanos, durante quase um ano. Ela estava completando agora 25 anos. Voltei a residir na “Capital do Pinho”. Investiguei. Falei ao Dr. Júlio a respeito da jovem que eu atropelara, de Ana Lúcia, que desde aquela época, não havia saído de meu pensamento, semelhante a uma sombra. Ora, à minha frente; ora às minhas costas. Quando corria atrás, na esperança de apanhá-la, ela fugia e quando parava, virado-lhe as costas, ela me seguia, sem que todavia, pudesse tocá-la. Ela era a minha própria sombra.
Nada descobri. Sua cura levou aproximadamente o tempo que eu havia previsto. Dali, ela partira. Ninguém sabia dizer para onde. Desaparecera da cidade, definitivamente. Tudo que deixara foi uma carta endereçada a mim, aos cuidados do Dr. Júlio. Aquela correspondência, estava agora, em minhas mãos. Aquelas folhas escritas com sofrimento, desgosto e desespero, à beira da loucura e da morte, queimavam meus dedos. Comecei a ler, e lágrimas rolavam pelas minhas faces. Senti que apesar de todo aquele tempo, eu, agora sim, tinha certeza de que a amava perdidamente.
Aquela carta fez com que eu a encontrasse, minha filha. E tivesse alguns momentos de paz e felicidade, como agora. Quando a apanhei, você era pequenina, bem pequenina.
− Do tamanho de uma boneca, Papai?
− É, isso mesmo. Parecia uma boneca. Você tinha os mesmos olhos que sua mãe, porém, azuis. Os de Ana Lúcia eram verdes. De um verde sedutor, provocante e atraente, capaz de exprimir paixão.
A narração de Luís Carlos foi novamente interrompida pelas perguntas da menina:
− Fale-me de mamãe. Como ela morreu?
− Sua mãe era linda. Sua beleza era contagiante. Seus cabelos eram loiros, cor de mel. Seu corpo esbelto e esguio, era dotado de espetaculares, perfeitas e bem torneadas pernas. Os cabelos caíam sobre seus ombros nus. Seu rosto era redondo e bem modelado. Seu corpo era escultural. Em seus lábios, sempre brilhava um sorriso jovial e cativante. O seu olhar era vivo e interrogador. Veja esta fotografia. Sua mãe era de fato uma linda mulher.
O senhor Junqueira cobriu o rosto com um lenço branco, escondendo assim, algumas lágrimas que brotavam de seus olhos. A descrição que Luís Carlos fizera, o deixara comovido. Sentia arrependimento e saudades de sua única filha, de Ana Lúcia, que não tivera o prazer de conhecer o verdadeiro amor.
O automóvel seguia, quase sem ruído, seu destino. Pararam defronte ao cemitério e os três saltaram, dirigindo-se a um túmulo que se encontrava no início do “campo sagrado”. Eles, unidos pelo mesmo elo de saudade, contemplaram comovidos, durante algum tempo, a pequena inscrição colocada sobre o túmulo. “Ana Lúcia Junqueira - 1936 – 1961”.
Aquele curto silêncio foi quebrado pela voz meiga e infantil da menina.
− É o túmulo da mamãe?
− Sim, minha filha. É o túmulo da mamãe, Esta é sua morada eterna.
− Vamos embora! Exclamou o senhor Junqueira. − Com este aguaceiro, acabaremos pegando uma pneumonia.
Eles responderam afirmativamente, com um simples movimento de cabeça. Atravessaram o cemitério e logo se instalaram no automóvel. Luís Carlos pôs o “Simca” em marcha procurando disfarçar a dor que sentia. Todavia, novamente, de seus olhos, lágrimas nasciam. Eram três destinos diferentes, ligados pela mesma angústia, pela mesma dor: “A perda de Ana Lúcia”.
− Papai, como morreu mamãe? Você não disse, ainda.
− Eu me julgo culpado da morte de sua mãe. Todavia, várias pessoas não concordam comigo. Quero ter sua opinião, minha filha e talvez assim, eu consiga ficar mais tranquilo, e seja um tanto lépido.
− Está bem, Papai. Conte-me como aconteceu, e no final, se possível, dar-lhe-ei minha opinião.
− Ham… Ham… Sua mãe, quando foi atropelada, ofendeu seriamente o pulmão esquerdo. A cabo de algum tempo, ela foi parar novamente no hospital, em Lages, tendo um derrame pulmonar. Faleceu alguns dias depois. No atestado de óbito constou como diagnóstico: “morte proveniente de um derrame pulmonar, ambos os órgãos (pulmões), estavam afetados”.
− Mas papai, o senhor não é culpado.
− Por quê?
− No acidente, foi afetado apenas o pulmão esquerdo, de mamãe. E no diagnóstico médico, ela morreu de um derrame provocado nos dois pulmões.
− É, você tem razão, minha filha. O Dr. Júlio também falou a respeito. Ele acredita que o derrame tenha sido provocado pelo frio intenso, e não pelo acidente, propriamente dito. Contudo, guardo comigo uma parcela de culpa.
− Papai, o senhor já sofreu bastante. Não há necessidade de se sentir culpado. Seu pecado foi redimido. O senhor sofreu durante cinco anos. Teve uma espécie de loucura pacífica, amnésia desnorteada, provocada pela morte da mamãe. O senhor já pagou, com juros, o que devia. Precisamos viver, papai. Eu preciso do senhor, de seu carinho, de seu afeto, de seu amor…
Aquelas palavras proferidas pelos lábios de uma menina de oito anos, o deixaram perplexo. Afagou os cabelos de Ana Lúcia e respondeu-lhe:
− É verdade, minha filha. A vida não pára. Ela continua. De fato, precisamos viver, recuperar o tempo perdido.
O jovem apanhou algumas folhas de papel, rasgou-as e soltou-as ao vento, pela janela do carro. Os papéis dilacerados foram apanhados pelo vento e pela chuva, girando vertiginosamente sobre si, até caírem no lamaçal. Em breve a água apagaria definitivamente o que fora escrito por Ana Lúcia. Contudo, na mente de Luís Carlos, continuariam gravadas.
− Papai! Exclamou a menina. − O senhor não leu a carta que mamãe, antes de morrer escreveu. Gostaria de saber o que ela dizia. É uma pena, papai. − Lamentou Ana Lúcia.
Luís Carlos não mais precisava daquelas folhas. Na realidade, ele sabia de cor o que continha a carta de Ana Lúcia, elas ficariam eternamente gravadas em seu cérebro. Aliás, fora aquela carta que o fizera perder a razão, a memória. A morte de Ana Lúcia, sem que ele voltasse a vê-la, causou-lhe uma espécie de congestão cerebral, deixando-o desnorteado, alucinado, amnésico… Dela, apenas guardava uma fotografia e uma imensa saudade que seria abrandada pela presença de sua filhinha, retrato fiel de sua Ana Lúcia.
Ana Lúcia, que na realidade não foi sua esposa, deixou aos cuidados de seu pai e de Luís Carlos, sua filha. Todavia, Luís Carlos tinha a menina como sua própria filha, tão grande era o amor que nutria por ela. Aliás, o verdadeiro amor compensa quaisquer sacrifícios.
A menina fora abrigada sob o teto de Luís Carlos; ela o tinha como seu legítimo pai, já que desconhecia esta fase da vida de sua mãe. Na realidade, a menina não tivera o prazer, a sensação de conhecer sua mãe. Quando nasceu, foi entregue ao senhor Junqueira, seu avô, que sempre cuidou dela, uma vez que a mãe não podia mantê-la, convenientemente.
Agora, a lembrança de Luís Carlos, com letras gravadas em seu cérebro, a fogo, vieram as palavras de Ana Lúcia. Seus pensamentos, como tela cinematográfica, começaram a passar lentamente, aquilo que dizia na carta.
Lages, 15 de outubro de 1961.
Luís Carlos,
Não sei se a dor me dará tempo para terminar esta carta. Todavia, sentindo a morte que se aproxima, e aproveitando-me do intervalo entre duas injeções, resolvi escrever-lhe.
Minha carta é um desafio ao sofrimento, é um ato de confiança na Misericórdia Divina, pois espero contar com a sua compreensão. Tenho plena certeza, de que quando esta carta chegar em suas mãos, eu já não mais exista, e nada mais poderei fazer por minha filha.
Minha vida, nos últimos anos, tem sido de desgosto, de tormento, de sofrimento e de vergonha. Passei fome e frio. E, hoje, estou acamada. Amanhã, estarei morta. Os sacrifícios, as humilhações, as decepções não me deixam viver mais.
Para que você se lembre de mim, você que foi tão bom, tão meigo e que me socorreu quando me acidentei, mando-lhe uma fotografia recente. O Dr. Júlio ficará encarregado de entregar-lhe esta carta, já que desconheço seu endereço. Foi ele quem me falou do que você fez por mim.
Assim, contando com seu bondoso coração, peço-lhe encarecidamente que procure minha filha, e cuide dela, como a um pai, pois soube, tarde, que você se apaixonou por mim. É justamente em nome desse amor, que lhe peço: “cuide de Ana Lúcia”. Ela é todo o meu tesouro, toda a minha riqueza que lhe deixo.
Talvez um dia, ela possa dar-lhe a alegria que não me foi possível conceder-lhe. Não era digna de seu amor, por isso, desapareci. Hoje, na dor e na desgraça, e na espera da morte, lembrei-me de você.
Quem sabe, lá no outro mundo, encontre paz e felicidade, e apague da minha memória o quanto lhe quis. É bem possível que nos encontremos ainda, porém, em espíritos. Na terra, sei que não há maneira de unir nossos sentimentos.
Quero dizer-lhe, em poucas linhas, o que foi a minha vida. Sei que ao conhecer meu pai, procurando minha filha, no endereço constante do verso do envelope, e perguntando-lhe a meu respeito, alguma coisa, ele não lhe dirá nada; absolutamente nada. E, tem lá suas razões. Sente-se culpado por tudo. Na realidade, a única culpada sou eu.
A desgraça atingiu nossa casa como uma tempestade, como um vendaval. Destruiu uma família inteira. Primeiro, foi a morte da mamãe. Um ataque cardíaco inesperado e surpreso, fez com que mamãe nos deixasse para sempre. Ficamos sozinhos. Eu, ainda era menina.
Parece que o destino se repete. Agora, vou deixar minha filhinha, também, menina. Tudo faria para viver mais um dia, contudo, meu fim está próximo. Já não consigo falar. Não conheço mais as pessoas. O medo percorre-me todo o corpo. É quase constante o delírio, o devaneio…
Oh! Deus! Quanto sofrimento!…
Deixe-me terminá-la, depois leve-me para longe, bem longe, para o infinito… Meu corpo parece flutuar. Sinto-me entre nuvens e fumaça. Já me encontro no espaço vagando, vagando… Mas, sinta comigo esta cena real, o princípio de meu drama, de meu fim.
‘Era tarde. Encontrava-me sozinha em casa, quando Pedro, meu namorado, sob vários pretextos e desculpas, pretendia falar comigo. Mandei-o entrar. Instalamo-nos confortavelmente, na sala de visitas.
Em seguida, com as mãos entrelaçadas, estávamos conversando baixinho, quase num sussurro. Assim, permanecemos longo tempo, esquecidos do mundo; era apenas um murmúrio de vozes, às vezes, interrompidos por momentos de silêncio. Era o arrulhar de dois corações sinceros, a sorrir, numa noite de inverno.
Depois de instantes de êxtase, enlevo e prazer, surgiu o inevitável. Escuso a contar-lhe o que se passou’.
Ainda ontem, soube que Pedro morreu. Faz tempo. De um acidente de automóvel. A sorte parece ser caprichosa. Senti pena dele, de sua covardia, de sua falta de compreensão, de sua falta de hombridade…
Na vida, só me resta você, depois da morte. Sei que sua consciência sentirá comigo todo o meu sofrimento. Fomos vítimas do destino. Talvez, um mundo melhor nos espere. Todavia, vou experimentar primeiro, e quem sabe, um dia possa recompensar-lhe por tudo, devidamente.
Agora, já não consigo mais escrever. Foge-me a razão. Meu raciocínio está vagando. Começo a delirar, contudo, antes de morrer, peço a Deus que deixe-me colocar seu nome ao meu lado.
Estou morrendo… Adeus… Luís Carlos.
Fonte:
RIBEIRO, Marcelino. Ana Lúcia. No livro “Nossa Terra, Nossa Gente”, de Coracy Pires de Almeida. Gráfica Comercial, 1968. Curitibanos/SC. 132 p.
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