segunda-feira, 8 de julho de 2024

KAINGANGS

Texto de Antonio Carlos Popinhaki


Os rios e riachos da região serrana do meio-oeste catarinense foram, no passado, indispensáveis, como importante apoio natural para a sobrevivência de milhares de indígenas da etnia kaingang. Ainda é possível localizar vestígios do estabelecimento dessas aldeias ao longo de algumas margens. Os rios não forneciam apenas alimento, como peixes, que eram pescados com habilidade excepcional não absorvida pelos colonizadores, mas também eram fundamentais na produção de ferramentas líticas (de pedra). Os indígenas usavam a correnteza das águas para alisar e polir pedras utilizadas como ferramentas cotidianas (mão de pilão, machadinhas, martelos, ponta de flechas, etc.). As águas dos rios, principalmente, o Canoas e o Marombas, também eram usadas para o banho diário e para o armazenamento de alimentos, especialmente o pinhão, que era depositado em cestos de taquara, bambu ou cipó e mergulhados para evitar contaminação por insetos, larvas ou fungos.

Os kaingangs demonstravam grande habilidade na pesca, utilizando uma armadilha chamada “pãri”. As aldeias ficavam próximas às corredeiras, onde faziam corredores de pedras dentro da água, forçando os peixes a passarem por eles (pelos corredores). Sabiam que os peixes costumavam subir e descer no leito do rio ou riacho. Em um ponto específico, fixavam um cesto de cipós trançado, com entrada facilitada para os peixes, mas com extrema dificuldade de saída. Esse sistema é conhecido em outros lugares do Brasil como “matapi” ou “puçá”. Uma vez que os peixes entravam na armadilha, bastava coletá-los para uma farta refeição. Havia uma infinidade de espécies de peixes nos rios da região de Curitibanos, garantindo uma abundância de alimentos.

Especificamente, o Rio Canoas é muito rico para a arqueologia. Perto da represa da Usina de São Roque, em Vargem/SC, foram catalogados mais de 80 sítios arqueológicos. Em alguns locais, ainda é possível ver grandes buracos escavados pelos nativos para se abrigarem do frio e da chuva. Esses buracos, hoje cobertos de mato e quase imperceptíveis, foram medidos e catalogados recentemente por arqueólogos do Paraná. Esses cientistas ainda procuram vestígios de material arqueológico dentro e ao redor dessas ruínas, como pedaços de pedras e cerâmica. Os antigos habitantes do planalto serrano eram habilidosos na confecção de panelas de cerâmica com esmerado acabamento, características peculiares do povo kaingang. Essas cerâmicas eram construídas como recipientes ovais, sem alças, utilizados para cozinhar alimentos e eram geralmente enterradas para permanecerem imóveis. Não possuíam alças, mas, após o contato com bandeirantes e tropeiros no final do século XVII, os kaingangs começaram a imitar as panelas com fundo reto e alças. Assim, os arqueólogos conseguem identificar se os artefatos de cerâmica encontrados, são de um período anterior ou posterior ao contato com os portugueses.

Na região de Curitibanos, existe uma planta milenar, o xaxim. Os indígenas utilizavam suas folhas para confeccionar camas em camadas e também para a cobertura das cabanas subterrâneas. O xaxim, uma espécie de samambaia, está atualmente em processo de extinção. Os nativos colocavam várias camadas dessas folhas até que, ao deitar sobre elas, se sentissem confortáveis. Após as noites geladas de inverno, era comum que tirassem essas folhas ao sol para evitar a ação de fungos e bactérias, prevenindo candidíase e micoses.

Os kaingangs eram bem higiênicos, tomavam banho diariamente, mais uma razão para fazerem suas aldeias perto de rios ou córregos. Utilizavam a água, como já citado, inclusive, para estocar o pinhão, um alimento precioso. Cada aldeia possuía uma certa quantidade de árvores de araucária de onde colhiam o fruto das pinhas, que eram debulhadas naturalmente pelo vento. Os kaingangs eram habilidosos em subir nas araucárias e, com a ajuda de uma vara de taquara ou outra espécie leve, derrubavam as pinhas. Enchiam cestos de taquara ou bambu com pinhão e submergiam-nos na água para evitar que insetos e larvas se apossassem dos pinhões. Caso algum brotasse, era possível comer o tenro broto. 

Devido ao pinhão, havia disputas de território, especialmente por invasores que não respeitavam as delimitações. Alguns desses vinham do Alto Vale do Rio Itajaí, como os indígenas da etnia xokleng, que subiam a serra geral para coletar pinhão em território kaingang.

Na pré-construção da Usina Hidrelétrica de São Roque, arqueólogos encontraram muitas pedrinhas pretas compostas de minério de ferro ao longo da margem do Rio Canoas. Uma senhora idosa, moradora local, elucidou que essas pedrinhas eram usadas como isqueiros pelos indígenas, que tinham habilidade em fazer fogo, essencial para cozinhar e se aquecer.

Ao longo dos rios e riachos da região do meio-oeste catarinense, existem marcas nas partes rasas, geralmente em locais onde o leito é de rochas aparentes, com pequenas cavidades ou valetas. Os kaingangs utilizavam as pedras lascadas para esfregar continuamente sob a água corrente nessas valetas, alisando ou polindo suas ferramentas.

Quando surgiram os primeiros bandeirantes na região de Curitibanos, por volta de 1679, os indígenas já viviam com seus costumes milenares. Estavam estabelecidos como povos originários, cinco séculos antes dos portugueses chegarem. Eram pertencentes ao povo “proto-jê”, principais ancestrais dos indígenas que viviam no planalto serrano, estavam espalhados sob a “mata das araucárias”, desde o atual território do Estado de São Paulo até o Rio Grande do Sul. Seus descendentes são os indígenas xoklengs e kaingangs, ligados linguisticamente ao “macro-jê”.

Os proto-jê do sul do Brasil eram arquitetos habilidosos, construtores de casas subterrâneas para se proteger do frio. Arqueólogos encontraram escavações próximas a Curitibanos de até 15 metros de diâmetro e 4 metros de profundidade. Esse povo transmitiu a sua cultura de geração em geração, confeccionando peças líticas e de artesanato em cerâmica, taquaras e cipós. Tinham a habilidade de confeccionar vários tipos de flechas, inclusive, algumas com uma ponta chamada virote, utilizada para não matar os pássaros, somente para imobilizá-los, pois não queriam que os mesmos sujassem as suas preciosas penas com sangue.

Quando os europeus chegaram ao atual estado de Santa Catarina no século XVI, encontraram povos originários da etnia carijó no litoral. Em outras faixas, viviam os xoklengs, kaingangs e guaranis, com diferenças linguísticas e culturais. Os kaingangs acreditavam que a terra era sua mãe, e, com o contato com europeus e colonizadores, perderam gradualmente suas identidades e culturas. Eram chamados genericamente de “bugres” por ignorância dos antigos tropeiros e fazendeiros da região central de Santa Catarina.

Os kaingangs viviam em semi-nomadismo, praticando agricultura, caça e coleta. Fixavam suas aldeias próximos às águas potáveis e matos fechados, conhecidos como “capões”, que os abrigavam dos fortes ventos. A água protegida ficava um tanto quente e, ao entardecer, se banhavam. O fogo era aceso diariamente para aquecer o chão.

Os kaingangs tinham regras de higiene saudáveis e utilizavam os recursos naturais ao seu redor. Cozinhavam o pinhão de várias formas e tinham amplo conhecimento da flora e fauna local. As tribos demarcavam territórios conforme as araucárias, impondo regras de comportamento e limites que, quando transgredidos, motivavam conflitos. Não só o pinhão era cozido ou assado, carnes de caça e de pesca eram muito apreciadas.

Até a metade do século XVII, viveram dessa forma, até que, em 1644, um grupo de portugueses miscigenados abandonou Asunción, no Paraguai, e se instalou em 1646, na região que compreende atualmente os municípios de Campos Novos e Curitibanos. Esses primeiros conquistadores de sangue não “indígena puro” sobreviveram às intempéries e aumentaram em número populacional. Quando os primeiros bandeirantes chegaram em 1679, já havia povoamento de pessoas mestiças.

Os europeus dependeram dos ensinamentos indígenas para confeccionar ferramentas rústicas. Havia atritos, mas também alguma amizade. Alguns tropeiros trocavam mercadorias com os nativos em troca de alimentos, principalmente animais caçados por eles. Gradualmente, os indígenas foram exterminados e expulsos de suas terras, enfrentando provocações por parte dos tropeiros, bugreiros, jesuítas e colonizadores. Em nome de um deus cristão, os portugueses exploraram a escravidão e a completa aniquilação dos povos originários. Jesuítas, por favores às coroas espanhola e portuguesa, ensinavam e contradiziam ensinamentos, confundindo os nativos.

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