sábado, 6 de fevereiro de 2021

UMA SURPRESA NO GUARDA-MOR

Texto de Antonio Carlos Popinhaki


O texto a seguir foi extraído do livro, intitulado “O Caminho das Tropas! Curitibanos, o Berço do Tropeirismo em Santa Catarina”, de Euclides J. Felippe. O texto também está publicado num outro livro do mesmo autor, conforme referenciei abaixo. Conta uma história que ocorreu nos anos 1940 no interior de Curitibanos, mais precisamente na fazenda do tropeiro Hilário Quadros de Andrade

Certo dia, após o seu retorno de uma tropeada pelo interior de São Paulo, a sua esposa, e seus colaboradores da fazenda, juntamente com os vizinhos, desejaram-lhe fazer uma surpresa, pois o seu aniversário coincidia com o seu retorno. Combinaram de comemorar a data com um baile e um churrasco, sem que o aniversariante soubesse. 

Como era de costume no interior, ao anoitecer, todos da casa fingiram retirar-se para dormir. Foram se deitar cedo, inclusive o aniversariante, o senhor Hilário. Não demorou muito tempo, na escuridão da noite, em frente à porteira da fazenda, ouviu-se uma salva de tiros e o choro de uma sanfona.

Enquanto o senhor Hilário levantou-se para ver o que era aquela barulheira, alguns convidados enveredaram para o potreiro, onde já estavam escolhidos e separados uma novilha e alguns leitões para a comemoração surpresa.

Proprietários da fazenda, vizinhos e alguns empregados foram para a sala e comemoraram o aniversário do senhor Hilário, esperando o tempo necessário para que os assadores preparassem o delicioso churrasco na brasa.

Após farta comilança, boa e animada conversa, a alegria estava solta e todos se prepararam para o animado baile. Quando iam começar a dançar, eis que surgiu na frente da propriedade um inesperado visitante a cavalo no breu da noite, prostrou-se em frente da residência e descarregou o seu revólver calibre 38, atirando para cima. 

Todos saíram para ver o que estava acontecendo. Era mais uma surpresa para o aniversariante, pois, se tratava de um conhecido da localidade de Marombas, um “tranca-ruas”, como se costumava dizer. Foi convidado a apear e a entrar na sala. Serviram-lhe uma bebida em sinal de hospitalidade e fidalguia, sem descuidarem das boas maneiras do inusitado visitante.

Tomou uns goles, repetiu a dose e logo ficou elétrico. Dizem que quando bebemos, nós mostramos aos demais como somos efetivamente. Foi o que aconteceu com esse visitante que apareceu na festa feita de surpresa, para comemorar o aniversário do senhor Hilário Quadros de Andrade. Adentrou alegre no meio da sala, chamando a atenção de todos:

- Viva o aniversarianteee!

Todos repetiram, meio que automaticamente: “Vivaa!”

Em seguida, já puxou uma morena e começou a dançar com ela, de maneira um tanto assanhada para aquele momento. Estava na sala de esporas, com o seu chapéu pendurado às costas pelo barbicacho. De repente, feriu os pés da moça com os garfos da espora. Houve um grito de dor estridente da moça. Estourou uma briga naquela sala, onde todos os incomodados pela presença daquele estranho se reuniram e expulsaram o indigesto para fora por uma janela. Depois de cair para a parte externa, o visitante sumiu na escuridão.

Alguns dias depois, eis que apareceu este pasquim na bodega do João Popinhak, na localidade de Marombas com essa espécie de poesia interiorana:


UMA BATIDA NO GUARDA-MOR


Quando um dia à meia tarde,

Enciiei a minha guacha

Amuntei na pareiera

E saí fazendo facha


Ao pulá do parapeito

Emborquei uma guaracha,

Perfumado bem no geito

Prá encontrá c’uma muchacha


Logo assim que anoiteceu

Ao subi num coxiião

Ouço o choro duma gaita

E o gemido dun violão


O chorinho era tão lindo

Que buliu no coração

Arranquei do trinta e oito

Que berrô feito trovão


Atirando assim sem rumo

Toda carga despejei

Bem na frente do farrancho

Várias brocha já rasguei


Bicharedo foi sartando

Como bespa dum bespero:

- “Quem será o valentão,

- Esse índio cabortero”?


- “Este cabra cupinudo

Este macho muito cuera

E herdero do meu pai

Moradô lá das Tiguera”.


Apiei e fui entrando

Num geitão bem disfarçado:

-“Companhero – me dissero

- Pra dançá ta convidado”.


Já tomei umas e otra

E fiquei meio tragueado

Vendo aquela moçarada

Arriei embasbacado.


Já fiquei entusiasmado

Vendo moças tão bonita

Era vê bodinho novo

No meio das cabrita


Dando uns viva pr’alegrá

Nosso bom niversariante

Erguendo pala cá nos ombro

E saí naquele instante.


Já braciei uma morena

E saí c’os meu trunféu

Fui de bota e reio erguido

C’as espora o c’o chapéu


Lá d’um canto um turuno

Me oiô de atravessado

E com cara de mau modo

Me chamô de marcriado.


Já mandei que arrepetisse

E passei-li a mão na guéla;

Amassei-li bem as fuça

E atirei pela janela.


Ai meu Deus, minha Trindade

Que tromenta mais medonha.

Dexei gente mais comprido

Doque bico de cegonha.


Como num redemoinho

Vinham firme prá pegá

Me virava como um gato

Dando só sarto mortá.


Era aço que rufava

Grito e tiro que saía

Bicharedo sapecado

Testaviavo e caía.


De repente vi um crarão

Tava perto du’a janela,

Vi as coisa s’empretando

Resorvi sartá por ela.


Eu saí co coro liso

Sem um lanho, sem um táio

Mas c’um galo na cabeça

Me doendo com’um raio.


Mas não é que apanhei

Isso foi por puro acaso

Foi no frevô que bati

C’a cabeça lá num vaso.


O meu corpo era ligero

Os meus zóio uns passarinho

Os meus braço era manguá

Os meus pé era ancinho.


Dei-li berro, dei cacete

Dei-li tapa, dei-li murro

Dei-li quengo e ponta-pé

Dei-li coice como um burro.


Eu sô nego de cutuba

Não injeito a parada

Eu nasci em campo aberto

Me criei costeando estrada.


Na rastera dô maçada

Numa faca sô de luxo;

Meus gambito são de mola

Caio fora e nego o bucho.


Numa gaita sô facero

Prá domá sô desastrado

Prá laçá não perco armada

Prá pialá sô respeitado.


Na porfia sei versejá

Sei dançá com as morena;

Mas nos braço duma loira

Inté Deus fica com pena.


Eu fiquei muito sentido

Desse baile se acabá

Desforrei a valentia

Mas meu Bem não pude amá.


O curpado disso tudo

Foi o cabra lazarento

“- Quem mandô me provocá...

- Seu tinhoso fedorento”?


Triste sorte foi a minha

Só por causa do briguento:

Eu perdi minha muchacha

Não dá mais o casamento.


Desde já eu lis prometo

Nunca mais arreliá:

Todo meu o prejuízo

Sem podê recuperá.


Foi perdido o som da gaita

Os ponteado do violão;

Mais os bejo das mulata

Fora encontro e apertão.


Seu Hilário eu li peço

Me perdoe a arrelia;

Até mais um novo encontro

C’um abraço, até otro dia!


Referência para o texto:


FELIPPE, Euclides J. Caminho das Tropas em Santa Catarina (O), O Pouso dos Curitibanos, 1ª edição do autor, 1996, Curitibanos-SC. 158 p.

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