segunda-feira, 15 de março de 2010

VISÃO DE MUNDO


Machado de Assis nos conta a história de “um canário que vivia em uma gaiola feia, num lugar sujo, entre os trastes de um velho armazém (desses balcões que vendem toda a natureza de coisas). Um cidadão, impressionado com o canto do pássaro entre tanta coisa morta, pergunta a ele se não sente falta do céu azul, ao que o pássaro lhe responde que não sabe o que é isso, que o seu mundo é aquela gaiola, e tudo mais é ilusão e mentira. O homem, intrigado, resolve comprá-lo. Coloca-o numa gaiola branca, em uma varanda que dá para o jardim. Depois de algum tempo, pergunta-lhe o que é o mundo, e ele responde que o mundo é um grande jardim com flores e arbustos, e que tudo mais é ilusão e mentira. O homem adoeceu e o seu empregado deixa o pássaro escapar. Tempos depois, passeando pelos arredores, ele vê o canário e torna a perguntar-lhe o que é o mundo para ele. O pássaro, então, lhe responde que o mundo é o espaço infinito e azul com o sol por cima.” E, se esse pássaro fosse levado por um astronauta ao espaço, o que diria? O conto de Machado de Assis é semelhante ao Mito da Caverna, de Platão. Ambos falam da relatividade da visão do homem. A visão de mundo das pessoas varia de acordo com o que ouviram, o ambiente em que estão, os lugares que freqüentam, os livros que lêem, enfim, transpiram a sua realidade cultural imediata. Essa visão de mundo é a sua verdade e o resto é ilusão e mentira. Os valores de uma sociedade se distinguem dos valores de outra. A verdade de um povo, de uma religião, de um partido político se distingue da verdade de outros povos, etc. Todo homem quer fazer de sua crença a verdade universal e impô-la aos demais. É o que acontece nas seitas religiosas e políticas. Existem, para esses homens, só duas categorias de pessoas: os bons e os maus. Maus são os que têm outra visão de mundo, de vida. Isso acontece em matéria de religião, política, economia e tantos outros assuntos. A ignorância pode ser comparada ao primeiro ambiente do canário no conto de Machado de Assis, há homens que nunca mudam de ambiente, não alteram seus hábitos, não diversificam ideologicamente suas leituras, repetem todos os domingos os mesmos ritos, no dia-a-dia estão fixos à mesma rotina... Esses são os prisioneiros da caverna, do mito de Platão. Vêem as sombras, e essas são a sua verdade; e o resto é ilusão e mentira. Educam os seus filhos nessa “verdade” e excomungam os demais que vêem a realidade de modo diferente. É impossível que todos os homens tenham a mesma visão (a mesma crença, os mesmos hábitos); por isso, a união entre homens reside na tolerância à visão alheia, porque nenhuma visão é completa. Nossas certezas são apenas um balbucio torpe daquilo que nos foi colocado repetidamente na cabeça desde a infância. E, na medida em que variarmos de ambiente, de  hábitos e diversificarmos o nosso abastecimento intelectual, concluímos que a verdade é bem mais complexa e mais distante. Essa percepção nos tornará mais humildes e mais tolerantes à verdade alheia.

Aldo Dolberth

2 comentários:

  1. Este texto foi publicado por José Pardinho Souza em 1987

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  2. Só lembrar que este texto foi publicado em março de 1989 e está disponível na internet e distribuído para acadêmicos desde 1990.

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